segunda-feira, 12 de outubro de 2009

NOVO PAPEL DO JUIZ NAS AUDIENCIAS CRIMINAIS



A nova redação do artigo 212 e parágrafo único do CPP e a consagração do princípio da oralidade e imediação na colheita da prova testemunhal.
Solon Bittencourt Depaoli.
Juiz de Direito e Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá (RJ)
A recente alteração pontual do Código de Processo Penal, no quetange à colheita da prova testemunhal, trouxe uma aproximação maior com omodelo acusatório "adversarial system",1 o qual estabelece a nítida divisão dospapéis a serem desempenhados pelas partes, exigindo um julgador distante dapersecução penal e dos atos probatórios de ofício.Tal afirmação fica consolidada pela redação do artigo 212 do CPP,o qual preceitua: "As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente àtestemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, nãotiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar ainquirição".A posição de juiz-ator foi modificada, ao menos nesse ponto damini-reforma processual, para uma postura eqüidistante e de fiscalização da provatestemunhal, nos termos do modelo acusatório adversarial.Apresenta-se de grande relevância a referida alteraçãoprocedimental para o resgate de uma estrutura dialética do processo, permitindoseuma intervenção direta das partes na produção de provas, respeitado o debateético e a construção da "verdade" sujeita à verificação e refutação, conformedoutrina de Ferrajoli.
2 Restou consagrada a imediação, mais consentânea com asformas não substancialistas de apuração dos fatos, potencializando- se umaestrutura cognitiva e garantista de processo.Goldschimdt3 salienta que nos primórdios do direito germânico osprocedimentos eram orais, sendo que, com a recepção do direito romano-1 Anotamos a ressalva do adversarial system, modelo onde predomina a iniciativa das partes na condução do processo e na produção das provas, ao passo que na forma inquisitorial system, após a propositura da demanda o processo desenvolve-se pelo impulso oficial. (GRINOVER, Ada Pellegrini. "A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório". In: A marcha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 77.2 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, FauziHassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.37.3GOLDSCHMIDT, James Paul. Princípios gerais do processo penal: conferências proferidas naUniversidade de Madrid nos meses de dezembro de 1934 e de janeiro, fevereiro e março de 1935. BeloHorizonte: Líder, 2002. pp. 89-90.2canônico a forma escrita passou a ser utilizada no processo penal, diante daremissão dos autos às faculdades de direito, dominando o processo inquisitorial.Após a revolução francesa é que foi restabelecido o princípio daoralidade, "ao menos para o juízo em que se baseia a sentença".Consiste tal diretriz4 em uma das principais reivindicações dosfilósofos da Ilustração, já que se contrapõe ao modelo inquisitorial secreto eescrito, irrompendo na cena, conforme Ibáñez, "como uma implicação necessáriado processo oral e público".5A realização pública e transparente dos atos consolida-se como um empecilho às condutas arbitrárias, sendo o "meio mais idôneo para asseguraruma verdade processual de superior qualidade", concentrando- se os atos probatórios e permitindo o contato direto do tribunal com as fontes (de prova)".6Ibáñez7 pontua que a prática da imediação resultou"perigosamente contaminada pelo modo irracionalista de conceber o princípio dalivre convicção", entendendo-se o problema pelo fato de ser impossível verificar ograu de valoração atribuído pelo julgador aos depoimentos das testemunhas.Entretanto, inobstante tal dificuldade, o magistrado da Suprema Corte Espanholaafirma que a imediação consolida-se como fonte racional explícita pela relação deproximidade tempo-espacial, permitindo-se valoração intersubjetiva e crítica deterceiros.8Para Binder9 a oralidade configura-se como princípio político egarantia de estruturação do processo penal, tendo como principais vantagens trêspontos que elenca: a) a "verdade" alcançada pela reconstituição dos fatosapresenta-se de forma mais segura; e b) os atos são realizados com a presençaconstante dos julgadores (juízes e jurados); e c) permitindo, além da aproximação,também a conversão da informação em prova da maneira mais rápida possível.Relativo à gestão da prova, consagrar-se a oralidade permite umamelhor fiscalização por parte dos atores envolvidos, concentrando- se o material deprova em atos únicos10 e permitindo uma valoração mais objetiva, sujeita ao4Conforme Julio B. J. Maier o princípio da oralidade já se encontrava presente na Declaração dos direitos deVirgínia (12/6/1776), seção 8; e também nos seguintes diplomas de direitos: artigo 6 da Declaração americanados direitos do homem; artigo 11 da Declaração Universal de direitos humanos, artigo 6 da Convênio para aproteção dos direitos humanos e das liberdades fundamen (Convênio europeu); artigo 14, n.°s 1 e 3 do Pactointernacional de direitos civis e políticos; e artigo 8, n.° 5 do Pacto de San José de Costa Rica. In: MAIER,Julio B. J. Derecho procesal penal... p. 649.5IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova e sentença penal. Tradução de Lédio Rosa de Andrade.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 1.6Idem, ibidem, p. 3.7Idem, ibidem, p. 5.8Idem, ibidem, p. 9.9BINDER, Alberto M. Introdução ao direito processual penal. Tradução de Fernando Zani. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2003. p. 66.10Goldschmidt explica que "quando as sessões forem várias, o princípio da oralidade somente continuarámantendo a identifidade física dos juízes durante todas as sessões do juízo oral porque, de outro modo, o quese processou perante o primeiro juiz chegaria ao conhecimento do segundo somente por meio da escritura."In: GOLDSCHMIDT, James Paul. Princípios gerais do processo penal...p. 89.3controle, além das partes interessadas diretamente na solução do problema,também do auditório externo.O princípio da oralidade e imediação resta complementado peladiretriz da valoração racional das provas, delineamentos a serem desenvolvidos.A diretriz da livre valoração das provas11 contrapõe-se ao regimedas provas legais,12 esse típico dos modelos inquisitoriais, com valores tarifadosao material probatório, ocupando o pólo central da hierarquia daquele sistema aconfissão do acusado, a qual era admitida quando existentes meros indícioscontra o suspeito.13Vallejo14 assinala que, para a completa compreensão doprincípio da livre valoração, restam exigidos dois momentos diversos no ato deavaliação da prova, sendo eles: a) a percepção direta da prova conforme oprincípio da imediação, bem como às declarações das testemunhas, dos peritos,vítima e o ofendido; b) o suporte racional que deve ser atribuído às provas, o qualpossui caráter geral, englobando todos os procedimentos.Pontua a existência de dois aspectos de juízo sobre a prova, umsubjetivo, inatingível, por óbvio, já que depende de elemento interno do julgador eoutro objetivo, vinculando o juiz às leis de lógica, experiência e conhecimentoscientíficos.15O princípio do livre convencimento racional ou motivadoconsolida-se como uma solução intermediária entre o sistema das provas legais16(inquisitorial) e o da íntima convicção17 que veio a superar o paradigmaanterior.18Miranda Coutinho,19 na abordagem desse sistema, pontua quenão poderá configurar-se como uma apreciação discricionária e arbitrária daprova, mas limitada por critérios objetivos, suscetíveis de motivação e controle.11O princípio da livre valoração das provas encontra-se consagrado no artigo 155, "caput", do Código deProcesso Penal: "O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida... ".12Como resquício do regime das provas legais no Código de Processo Penal Brasileiro, Aury Lopes Júniortraz o exemplo do artigo 158, onde nas infrações que deixam vestígios exige-se o exame de corpo delito e,também, na mesma linha, pelo artigo 155 do mesmo diploma, no tocante ao estado das pessoas somentecomprovado conforme a previsão da lei civil." In: LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e suaconformidade constitucional. Vol. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 531.13VALLEJO, Manuel Jaén. Los principios de la prueba en el proceso penal. Colombia: Centro deinvestigaciones de derecho penal y filosofía del derecho, 2000. p. 31.14Idem, ibidem, p. 32.15Idem, ibidem, p. 33.16Nesse modelo pelo legislador era conferida valoração anterior a determinados tipos de prova, nos termosdefinidos por lei e sem atentar para as peculiaridades dos casos concretos. Segundo Maier, a valoração dasprovas era para fins de limitação do poder do julgador, já que o mesmo decidia conforme o valor da provatarifada. In: MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal... p. 298.17Conforme Aury Lopes Júnior, nesse modelo não havia necessidade de fundamentação da decisão,tampouco vinculação ou obediência ao sistema das provas tarifadas ou legais. In: LOPES JÚNIOR, Aury.Direito processual e sua conformidade. .. p. 531.18Idem, ibidem, id.19MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. "Introdução aos princípios gerais do processo penal4O momento da valoração das provas, nas lições de GomesFilho,20 configura-se como o ápice de um procedimento complexo onde sãorealizados os momentos da seleção, crítica, aceitação ou rejeição do material,para a finalidade de transformação ou não em uma "crença sobre a veracidade oufalsidade das proposições de fato afirmadas pelas partes".Nessa etapa processual que se realiza a análise a respeito das"regras de legalidade na obtenção e incorporação das provas ao processo, pelaproibição imposta ao julgador de apreciar os elementos eventualmenteintroduzidos com violação dessas normas."21Como já explicado em momento anterior, a motivação a serdesempenhada pelo julgador, com a exposição de "todos os passos percorridos"até o momento final da decisão, representa, conforme Gomes Filho,22 "ponto dereferência obrigatório para a verificação da imparcialidade, do atendimento àsprescrições legais e do efetivo exame das questões suscitadas no processo pelaspartes."Já Ibáñez23 destaca que o "modo de proceder no âmbito davaloração da prova deve ser inicialmente analítico", ou seja, o resultado de cadaoperação efetivar-se-á conforme as individualidades e características especiais docaso analisado.Para o jurista espanhol importante a identificação da respectivafonte de prova (pessoa, documento ou objeto da perícia), confrontando a suarelação com os fatos a serem apurados, valorando-se também "a aptidão do meioprobatório proposto para obter informação útil da fonte de que se trate, tendo emconta suas circunstâncias, seu estado de conservação, em função do transcursodo tempo e outros dados.24Em fechamento, longe das várias críticas que restarãodirecionadas à nova redação do artigo 212, "caput", do CPP, no que tange àcolheita direta da prova testemunhal, é inegável o caráter de evolução e respeitoàs garantias processuais do cidadão por força do deslocamento da iniciativaprobatória às partes envolvidas.O atendimento irrestrito aos passos de apresentação, seleção,requerimento e posterior valoração das provas, sempre com tais etapas sujeitas àefetiva participação das partes, consolida uma forma democrática e legitimadorado processo, em especial no que tange aos limites que deverá ter o magistradoatinente à gestão do material probatório colhido.brasileiro". In: Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, Nota Dez, n.° 1/2001. p. 50.20GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 1997. p. 159.21Idem, ibidem, p. 160.22Idem, ibidem, 164.23IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova e sentença penal. Tradução de Lédio Rosa de Andrade.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 42.24Ibidem, idem, id.

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