A VIOLAÇÃO AO ARTIGO 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: CAUSA DE NULIDADE PROCESSUAL ABSOLUTA
André Luis Bortolini
Promotor de Justiça de Mallet/PR
Rua XV de Novembro, Centro, CEP 84570-000
Mallet/PR
Telefone: (42) 3542-1741
E-mail: abortolini@mp. pr.gov.br
Leandro Garcia Algarte Assunção
Promotor de Justiça de Clevelândia/PR
Rua Manuel Ferreira Bello nº 123 – Centro – CEP 85530-000
Clevelândia/PR
Telefone: (46) 3252-1994
E-mail: lgaassuncao@ mp.pr.gov. br
JUSTIFICATIVA
Artigo 5º, inciso II, da Resolução nº 511/2009.
INTRODUÇÃO
Com o presente estudo, pretendemos destacar a consagração definitiva do sistema acusatório no ordenamento jurídico processual penal brasileiro e ressaltar importância a que foram elevadas as partes da relação processual penal (especialmente, para nós, o Ministério Público), em específico no que tange à produção da prova, com o reconhecimento de que o Estado-Juiz, a partir da vigência da Lei nº 11.690, de 09 de junho de 2008, não pode mais participar direta e ativamente da produção probatória, sob pena, a nosso aviso, de nulidade processual absoluta.
TESE
O princípio acusatório surgiu na ordem jurídica brasileira como corolário do princípio do devido processo legal, expresso no artigo 5°, LIV, da Constituição da República, contemplando a garantia de que ao réu sempre será assegurado um julgamento justo.
Nesta senda, além dos princípios expressos (princípios do contraditório e da ampla defesa, da motivação das decisões judiciais, da proibição do uso de provas obtidas por meios ilícitos, etc.), reconheceu o legislador constituinte, implicitamente, outras garantias processuais (princípio da imparcialidade do juiz, princípio acusatório, etc.), as quais nitidamente se extraem do corpo da Constituição da República.
Assim, o princípio acusatório adotado pela Lei Maior de 1988 demanda dos operadores do direito o abandono das práticas inquisitoriais, arraigadas na cultura jurídica do nosso país, atribuindo o devido valor a cada um dos atores processuais: ao Estado-Juiz, a função de árbitro da demanda, garante dos direitos individuais do acusado e julgador; ao Estado-Promotor e ao réu, a função de parte, com os respectivos direitos, deveres, ônus e faculdades.
A mera existência de partes, no entanto, não satisfaz o referido princípio, fazendo-se mister que cada ator do processo, máxime o magistrado, limite-se a realizar a atividade que lhe foi atribuída, sem invadir as atribuições dos demais, em contraposição ao princípio inquisitório, por meio do qual se permite que o magistrado não apenas julgue, mas também realize atividades típicas da defesa e da acusação, sobretudo dessa última.
"Com relação à separação das atividades de acusar e julgar, trata-se realmente de uma nota importante na formação do sistema. Contudo não basta termos uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação e depois, ao longo do procedimento, permitir que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora. [...] Fica evidente a insuficiência de uma separação inicial de atividades se, depois, o juiz assume um papel claramente inquisitorial. O juiz deve manter uma posição de alheamento, afastamento da arena das partes, ao longo de todo o processo." Aury Lopes Jr, "Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista)" , Editora Lumen Juris, 3ª. ed., 2005
Conquanto o sistema acusatório seja dotado de outras características, como a oralidade, a publicidade e a igualdade de partes, o atributo que o destaca é a estrita divisão de funções entre cada ator processual, sendo a mola mestra desse sistema a gestão das provas pelas partes (princípio informador).
Ora, o juiz, sendo ser humano como qualquer outro (com histórico de vida familiar, pessoal, funcional, etc.), não pode ser visualizado, de forma automática, como sujeito dotado de plena imparcialidade. Deve, ao nosso sentir, buscar esse atributo por meio de mecanismos processuais postos a seu serviço, dentre os quais vislumbramos a estrita separação entre as funções reservadas ao julgador, ao acusador e ao defensor, emprestando efetividade ao modelo acusatório de processo. Com efeito, partindo-se da premissa da condição humana do magistrado, afigura-se evidente que sua vinculação com a prova em si e com sua produção retira a característica mais importante de sua função, que é justamente a imparcialidade (sem querer afirmar, à evidência, que com isso passa a ter o magistrado interesse na causa).
Este caminho no agir do magistrado faz com que este sujeito processual figure como órgão suprapartes, posicionando- se em eqüidistância das partes, não podendo se envolver psicologicamente com os elementos materiais em debate no processo, ou seja, evitando qualquer afetação inoportuna e açodada sobre o resultado final da contenda.
É evidente, ao nosso ver, que quando o juiz se arvora no direito de produzir provas não mantém a sua imparcialidade, posto que ao sair em busca de provas sabe o que deseja encontrar, favorecendo, não raro, a condenação do acusado, funcionando como um segundo órgão persecutor, ao lado do Ministério Público.
"Quando diligencia, de ofício, além dessa fronteira do aclaramento das imputações e elementos a ele já levados, o julgador expõe-se, sim, ao parcialismo. Conforme serena reflexão de Cafferata Nores, se, para resguardar o interesse público na punição do delito, permiti¬mos que os juizes ajudem ou até substituam o Ministério Público na sustentação probatória da acusação, estaremos admitindo que os juízes sejam co-promotores, o que não é tolerável em um Estado de Di¬reito, cujo selo distintivo em matéria de administração da justiça é precisamente a imparcialidade daqueles, condição que resulta francamente incompatível com as de colaboração com o dominus litis ou com funções investigativas ou co-acusadoras. " Danielle Souza de Andrade e Silva, "A Atuação do Juiz no Processo Penal Acusatório – Incongruências no Sistema Brasileiro em Decorrência do Modelo Constitucional de 1988", Editora Sergio Antônio Fabris, 2005
Tão somente com o respeito ao modelo acusatório de gestão de provas é que os sujeitos processuais darão guarida ao que lhes foi reservado pelo texto constitucional, vale dizer, ao Ministério Público e ao acusado (por meio da defesa técnica) a total responsabilidade pela gestão da prova (exclusiva carga probatória) e ao magistrado, a mais nobre função de julgar imparcialmente e garantir os direitos fundamentais do acusado.
O princípio da verdade real (?!?), recitado por muitos manuais e pelos tribunais pátrios como fundamento ao sistema inquisitorial, permitindo que o magistrado controle a colheita do material probatória, como se parte fosse, não mais possui espaço diante da ordem jurídica advinda com a Constituição da República de 1988, até mesmo porque, em termos filosóficos, mostra-se comprometido nos dias atuais o discurso de uma verdade real fielmente reproduzida por meio de um processo histórico de reconstrução de situações fáticas (processo), sendo mais adequado falar, com Ferrajoli, na busca e obtenção de uma verdade processual, ou verdade possível.
"A verdade, no processo penal, constrói-se com a garantia da dialética das partes vistas num plano de igualdade. Igualdade que é garantida por diversos instrumentos assegurados constitucionalmente e que se enquadram no chamado processo penal acusatório. Perde sentido valer-se o julgador do princípio da verdade real para arvorar-se do poder de produzir provas, porquanto assim estará concretizando a figura do juiz instrutor, incompatível com as diretrizes esposadas na Constituição.
O qualificativo atribuído à verdade no processo penal, o de verdade real, ou `material', não pode continuar a servir de escudo para atitudes tentadoras de ingerência na atividade que cabe às partes no processo penal, sob pena de inconscientemente, afetar-se a esfera de imparcialidade objetiva.
[...]
A verdade em direito, enfim, é um constante devir, um dado não contido previamente no sistema jurídico, mas ao qual se chega após a prática de um procedimento judicial em que o julgador (sujeito tecnicamente imparcial) colhe elementos (critério da prova) para, a partir de ponderações argumentativas, articular pressupostos e consequên¬cias e formar um convencimento, sem que se possa, com isso, disso¬ciar a verdade assim alcançada dos valores socialmente mais relevan¬tes naquela situação." Danielle Souza de Andrade e Silva, "A Atuação do Juiz no Processo Penal Acusatório – Incongruências no Sistema Brasileiro em Decorrência do Modelo Constitucional de 1988", Editora Sergio Antônio Fabris, 2005
A este diploma normativo, fulcrado na busca da verdade real (?!?) e divorciado da ordem constitucional, aliam-se muitos operadores jurídicos que admitem, assim, o sistema inquisitório na realidade jurídica brasileira, sob um frágil discurso de busca da verdade real como forma de proteção da sociedade (essa postura do Poder Judiciário que, em detrimento de direitos individuais do acusado, milita em favor da segurança pública é típica de Estados totalitários) .
"É importante destacar que a principal crítica que se fez (e se faz até hoje) ao modelo acusatório é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição da imparcialidade) , pois este deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado. Esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (através da inquisição) um
gravíssimo erro. O mais interessante é que não aprendemos com os erros, nem mesmo com os mais graves, como foi a inquisição. Basta constatar que o atual CPP atribui poderes instrutórios para o juiz, a maioria dos tribunais e doutrinadores defende essa `postura ativa' por parte do juiz (muitas vezes invocando a tal `verdade real, esquecendo a origem desse mito e não percebendo o absurdo do conceito), proliferam projetos de lei criando juizes inquisidores e `juizados de instrução', etc.
Frente ao inconveniente de ter que suportar uma atividade incompleta das partes (preço a ser pago pelo sistema acusatório), o que se deve fazer é fortalecer a estrutura dialética e não destruí-la, com a atribuição de poderes instrutórios ao juiz. O Estado já possui um serviço público de acusação (Ministério Público), devendo agora ocupar-se de criar e manter um serviço público de defesa, tão bem estruturado como o é o Ministério Público. É um dever correlato do Estado para assim assegurar um mínimo de paridade de armas e dialeticidade. " Aury Lopes Jr, "Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista)" , Editora Lumen Juris, 3ª. ed., 2005
Ora, uma das feições constitucionais do Ministério Público é a de órgão acusador, com o escopo de assegurar nas mãos do Estado – além do monopólio da jurisdição - a exclusividade da persecução penal, preservando a imparcialidade do juiz.
Diante deste contexto, forçoso inferir que a iniciativa probatória do magistrado deve ser, no máximo, supletiva à das partes, sendo a iniciativa de prova totalmente vedada, preservando- se sua imparcialidade e eqüidistância das partes.
A Lei n. 11.690, que entrou em vigor em 09/08/2008, trouxe nova roupagem ao tema das provas penais no CPP, aproximando- se do sistema acusatório modelado pela Constituição da República e trazendo à baila, com isso, uma questão absolutamente essencial à produção da prova no processo penal brasileiro.
Uma das modificações mais substanciais refere-se à nova redação do artigo 212 do CPP: "As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição."
A ratio legis, de forma clarividente, é buscar maior imparcialidade ao juiz, distanciando- o da colheita das provas, concedendo a este sujeito processual tão-somente poderes complementares aos das partes, vale dizer, esclarecendo pontos ainda obscuros acerca das perguntas dirigidas pelas partes.
Por oportuno, veja-se o seguinte comentário:
"Analisando o processo de formação da lei em seus debates no Congresso Nacional, é possível afirmar que a vontade do legislador foi assegurar que as partes perguntassem primeiro que o juiz. Neste sentido, Comissão instituída pelo Poder Judiciário apresentou à Senadora Ideli Salvatti propostas de emendas, que foram apresentadas por esta Senadora à CCJ do Senado Federal, para alteração do PLC n. 37/2007 (originário do PL n. 4.205/2001 da Câmara dos Deputados). Dentre estas, constava a Emenda Modificativa n. 07, que alterava a redação original para permitir que o juiz perguntasse antes que as partes, ao argumento de que, sendo ele destinatário da prova, deveria ter primazia em sua colheita. [...]
Todavia, esta Emenda n. 07 foi rejeitada pela CCJ do Senado, que seguiu o Parecer n. 1.089/2007, da lavra do Relator do projeto de lei no Senado, Senador Mozarildo Cavalcanti. Este parecer é eloqüente e merece transcrição das partes ligadas a este ponto: Todos os projetos de lei da chamada Reforma do Código de Processo Penal estão fundados no modelo acusatório, reconhecidamente o mais apto à consecução de um processo penal não apenas ético, mas igualmente mais simples, célere, transparente e desburocratizado, trazendo maior eficiência e atacando a impunidade." Thiago André Pierobom de Ávila - A nova ordem das perguntas às testemunhas no processo penal (CPP, art. 212), www.jusnavigandi. com.br
Todavia, mesmo diante da alteração legislativa, que concede máxima efetividade ao sistema acusatório adotado pelas normas constitucionais, há magistrados que ainda preferem interpretar a norma do art. 212 do CPP no sentido de que o juiz ainda possui o poder de perguntar primeiro, com postura inquisitorial (ativa na colheita da prova). Ao agir desta forma, em nosso entendimento, tais representantes do Estado-Juiz acabam por olvidar a ratio legis que inspirou a alteração legislativa, conduzindo a hermenêutica para um discurso com traços inquisitoriais.
Neste passo, cabe-nos refletir acerca das conseqüências jurídicas do não cumprimento do modelo procedimental instaurado a partir da novel redação do artigo 212 do CPP. Ou seja, cabe a indagação: a postura judicial inicialmente ativa na colheita das provas, com violação à ordem estabelecida pelo artigo 212, do CPP, gera mera irregularidade, nulidade relativa ou nulidade absoluta do processo a partir do ato processual viciado?
A nosso aviso, a violação do modelo acusatório de gestão de provas estabelecido no artigo 212 do CPP, com a colheita de provas diretamente pelo magistrado e com a atuação supletiva das partes (ordem estabelecida antes da vigência da Lei nº 11.690/08) gera nulidade absoluta do processo, posto que as normas constitucionais com teor processual têm natureza de normas de garantia, vale dizer, de normas que buscam assegurar maior imparcialidade e isenção ao juiz, de garantia das partes e de processo justo (baliza substancial do devido processo legal).
Nessa ordem de sustentação, decisão recente do vanguardista Tribuna de Justiça gaúcho declarou a nulidade absoluta do processo, por lesão ao princípio acusatório na iniciativa probatório do magistrado:
"PROCESSUAL PENAL. INQUIRIÇÃO DAS VÍTIMAS E TESTEMUNHAS DIRETAMENTE PELA MAGISTRADA CONDUTORA. NULIDADE.
A nova redação legal do art. 212 do CPP, dando largo passo em direção ao sistema acusatório consagrado na Lei Maior, previu expressamente a subsidiariedade das perguntas do Magistrado em relação às indagações das partes: do juiz é exigido o julgamento justo e eqüidistante, de modo tal que não pode ele ter compromisso com quaisquer das vertentes da prova." (Apelação n. 70028349843, da 5ª. Câm. Crim. do TJRS, rel. des. Amilton Bueno de Carvalho, julgado em 18/03/2009)
Nesta brilhante decisão, considerou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que a ausência do Promotor de Justiça na audiência e a realização das perguntas pelo magistrado gera a necessidade de nulificação parcial do processo para que nova sentença fosse proferida valorando como prova oral exclusivamente o interrogatório do acusado, mediante a fundamentação de que "a legislação subalterna deu claro passo no rumo do sistema acusatório consagrado na Lei Maior, vindo a determinar que o juiz pergunte após e subsidiariamente às partes. Mas se as partes nada quiserem indagar, ou se, intimadas, não demonstrarem interesse em comparecer na audiência designada, data venia, não há o que possa o juiz `complementar' : a iniciativa das partes é a de nada perguntar, e não será o juiz que substituirá tal interesse." E prossegue " E como a defesa, presente na audiência, não manifestou interesse em qualquer pergunta às ofendidas e às testemunhas – suas indagações alcançaram apenas o interrogatório do acusado –, não vejo outro caminho senão o de anular o feito no ponto viciado (fls. 99/106) e determinar a imediata prolação de sentença, à vista, apenas, do interrogatório do réu (neste a defesa demonstrou interesse em realizar indagações e, ademais, o regramento legal incidente na espécie é outro, a teor do que dispõe o art. 188 do CPP)."
Neste trabalho, procuramos defender (visando suscitar as discussões nas próprias fileiras de nosso Ministério Público) que, especialmente a partir da vigência da Lei nº 11.690/08 (que consagrou definitivamente o sistema acusatório dentro do ordenamento jurídico pátrio), houve vedação à produção da prova no processo penal diretamente pelo magistrado, competindo tão somente às partes tal iniciativa e ao magistrado atuação complementar desde que vinculada aos pontos de discussão em debate nos autos. As teses acusatória e defensiva devem ser sustentadas e demonstradas única e exclusivamente pelas partes constitucionalmente investidas de tal mister, quais sejam, o Ministério Público e a Defesa. Sustentadas pelas partes e demonstradas ao órgão judicial, que, para se desincumbir materialmente de sua função de garante dos postulados de ordem republicana que emanam da Carta Magna, deve apenas receber a prova produzida pelas partes, não podem ter a iniciativa de sua produção, ainda que se verifique falha na atuação do órgão do Ministério Público na reconstituição da situação fática retratadora de um ilícito criminal.
Suponhamos que em um caso de grande repercussão em um pequeno município do interior do Estado (latrocínio ou estupro, v.g.), em uma situação evidentemente imaginária e extremada, o órgão do Ministério Público daquela localidade reiteradamente se abstém do seu dever constitucional de produzir em juízo sob o crivo do contraditório os elementos de convicção necessários à procedência da pretensão acusatória, deixando, inclusive, de comparecer às audiências respectivas. O magistrado, sabedor desta postura do Parquet e percebendo que as provas produzidas em juízo, naquela perspectiva, conduzirão à absolvição do acusado, decide então se irrogar na função de órgão acusador e passa, no nosso exemplo, a colher diretamente todos os relatos das testemunhas e informantes, afastando a incidência do artigo 212 do CPP. Pergunta-se: houve violação ao sistema acusatório e seus corolários (imparcialidade, vinculação indevida à prova, etc.) e, em assim sendo, trouxe tal comportamento nulidade processual absoluta ao feito?
A resposta deve necessariamente ser positiva.
Essa talvez seja a maior crítica ao sistema acusatório: a impossibilidade do Estado-Juiz de se substituir ao órgão acusador quando este último age de maneira negligente ou falha, ainda que se possa perceber, de plano, que o caso demandaria procedência da eventual pretensão acusatória. Nada resta ao magistrado no tocante à produção desta prova. Pode intentar junto ao órgão respectivo a obtenção de sanção disciplinar do membro do Ministério Público por falta do dever funcional, mas jamais pode interferir no resultado da ação penal, sob pena de se vincular aos elementos de convicção e perder sua inarredável imparcialidade.
Citando Aury Lopes Jr.:
"A posição do juiz é o ponto nevrálgico da questão, na medida em que `ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, mais sábio que experto; o rito inquisitório exige, sem embargo, um juiz-ator, representante do interesse punitivo e, por isso, um enxerido, versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação'.
O tema também está intimamente relacionado com a questão da verdade no processo penal. No sistema inquisitório, nasce a (inalcançável e mitológica) verdade real, onde o imputado nada mais é do que um mero objeto de investigação, `detentor da verdade de um crime', e, portanto, submetido a um inquisidor que está autorizado a extraí-la a qualquer custo. Recordemos que a intolerância vai fundar a inquisição. A verdade absoluta é sempre intolerante, sob pena de perder seu caráter `absoluto'." Aury Lopes Jr, "Direito processual Penal e sua conformidade constitucional" , Editora Lumen Juris, Volume I, 2ª ed., 2008, p. 73
Em sede de decisão liminar no Habeas Corpus nº 121.216 - DF (2008/0255943- 3), o eminente Ministro do STJ Jorge Mussi, assim decidiu:
"Não obstante haja resistência pertinente às mudanças procedidas no ordenamento processual penal, é certo que com a nova redação dada ao art. 212, pela Lei nº 11.690/2008, `o juiz simplesmente poderá complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos, cabendo-lhe ainda não admitir as perguntas que não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já feita' (SOUZA, JOSÉ BARCELOS DE. Boletim IBCCrim. Novas leis de processo: inquirição direta de testemunhas. Identidade física do juiz. ano 16, nº 188, julho, 2008, p. 15). [...]
No caso em apreço, da documentação acostada ao remédio constitucional, extrai-se do termo de audiência consignação feita pelo julgador no sentido de que `tal dispositivo legal não trouxe qualquer inovação com relação ao sistema outrora estabelecido a respeito da presidência dos atos procedimentais realizados no curso das audiências, qual seja, sistema presidencial, o qual permanece em pleno vigor e, nessa condição, concede ao Magistrado o poder/dever de, caso queira, argüir primeiro as testemunhas arroladas pelas partes' (fls. 31).
O aresto vergastado, por sua vez, reconheceu que na hipótese o ato objurgado incorreu `em erro de procedimento' , porém negou provimento à reclamação (fls. 53 a 61).
Assim, em que pese os judiciosos fundamentos expostos no acórdão reclamado, o qual mesmo admitindo que houve a inversão apontada pelo Ministério Público, não anulou a audiência procedida em desacordo com o art. 212 do Diploma Processual Repressivo, em um exame perfunctório próprio desta fase procedimental, resta suficientemente demonstrada a plausibilidade jurídica do pleito referente à ofensa ao devido processo legal, sendo mister destacar que contra o paciente já foi proferida sentença condenatória, ou seja, está em vias de iniciar o cumprimento de sanção imposta em feito que, tudo indica, é nulo.
Desse modo, presentes os requisitos necessários ao acolhimento da tutela de urgência, consistentes no fumus boni juris e no periculum in mora, defere-se a liminar, para suspender os efeitos do édito repressivo até o julgamento definitivo deste mandamus."
CONCLUSÃO
Diante do exposto, a necessária conclusão é de que o desrespeito ao preceito normativo do novo artigo 212 do CPP, enseja efetivo prejuízo às partes e atentado à função jurisdicional, ante a lesão a formalidades legais que implicam violação aos princípios constitucionais direta ou reflexamente, fazendo-se mister a declaração de nulidade absoluta.
De outra banda, ao nosso sentir a atuação judicial complementar, após a inquirição das testemunhas pelas partes, deve ser procedida com bastante cautela ou parcimônia, tão-somente para preencher lacunas eventualmente decorrentes de questionamentos das partes (sobre fatos que, para o juiz, não tenham ficado plenamente claros, mas que já tenham sido ventilados pelas partes), não se podendo admitir que o magistrado estenda o lastro probatório, arvorando-se na função instrutória e afetando o sistema acusatório, em que a gestão da prova pertence às partes, relegando a interpretação conforme a Constituição do dispositivo legal do artigo 212 do CPP.
É mais do que chegada a hora (já que passados mais 20 anos da promulgação da Constituição da República) de fazer-se uma releitura do papel do juiz na atuação no processo penal, de um lado valorizando a tão nobre função de julgar com imparcialidade, com equidistância dos sujeitos processuais parciais, e de outro preservando as garantias constitucionais do acusado (e do processo), buscando a verdade processual e tendo por meta final a busca de um processo penal justo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aury Lopes Jr, "Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista)" , Editora Lumen Juris, 3ª. ed., 2005
Aury Lopes Jr, "Direito processual Penal e sua conformidade constitucional" , Editora Lumen Juris, Volume I, 2ª ed., 2008, p. 73
Danielle Souza de Andrade e Silva, "A Atuação do Juiz no Processo Penal Acusatório – Incongruências no Sistema Brasileiro em Decorrência do Modelo Constitucional de 1988", Editora Sergio Antônio Fabris, 2005
Thiago André Pierobom de Ávila - A nova ordem das perguntas às testemunhas no processo penal (CPP, art. 212)
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André Luis Bortolini
Promotor de Justiça de Mallet/PR
Rua XV de Novembro, Centro, CEP 84570-000
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Leandro Garcia Algarte Assunção
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JUSTIFICATIVA
Artigo 5º, inciso II, da Resolução nº 511/2009.
INTRODUÇÃO
Com o presente estudo, pretendemos destacar a consagração definitiva do sistema acusatório no ordenamento jurídico processual penal brasileiro e ressaltar importância a que foram elevadas as partes da relação processual penal (especialmente, para nós, o Ministério Público), em específico no que tange à produção da prova, com o reconhecimento de que o Estado-Juiz, a partir da vigência da Lei nº 11.690, de 09 de junho de 2008, não pode mais participar direta e ativamente da produção probatória, sob pena, a nosso aviso, de nulidade processual absoluta.
TESE
O princípio acusatório surgiu na ordem jurídica brasileira como corolário do princípio do devido processo legal, expresso no artigo 5°, LIV, da Constituição da República, contemplando a garantia de que ao réu sempre será assegurado um julgamento justo.
Nesta senda, além dos princípios expressos (princípios do contraditório e da ampla defesa, da motivação das decisões judiciais, da proibição do uso de provas obtidas por meios ilícitos, etc.), reconheceu o legislador constituinte, implicitamente, outras garantias processuais (princípio da imparcialidade do juiz, princípio acusatório, etc.), as quais nitidamente se extraem do corpo da Constituição da República.
Assim, o princípio acusatório adotado pela Lei Maior de 1988 demanda dos operadores do direito o abandono das práticas inquisitoriais, arraigadas na cultura jurídica do nosso país, atribuindo o devido valor a cada um dos atores processuais: ao Estado-Juiz, a função de árbitro da demanda, garante dos direitos individuais do acusado e julgador; ao Estado-Promotor e ao réu, a função de parte, com os respectivos direitos, deveres, ônus e faculdades.
A mera existência de partes, no entanto, não satisfaz o referido princípio, fazendo-se mister que cada ator do processo, máxime o magistrado, limite-se a realizar a atividade que lhe foi atribuída, sem invadir as atribuições dos demais, em contraposição ao princípio inquisitório, por meio do qual se permite que o magistrado não apenas julgue, mas também realize atividades típicas da defesa e da acusação, sobretudo dessa última.
"Com relação à separação das atividades de acusar e julgar, trata-se realmente de uma nota importante na formação do sistema. Contudo não basta termos uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação e depois, ao longo do procedimento, permitir que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora. [...] Fica evidente a insuficiência de uma separação inicial de atividades se, depois, o juiz assume um papel claramente inquisitorial. O juiz deve manter uma posição de alheamento, afastamento da arena das partes, ao longo de todo o processo." Aury Lopes Jr, "Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista)" , Editora Lumen Juris, 3ª. ed., 2005
Conquanto o sistema acusatório seja dotado de outras características, como a oralidade, a publicidade e a igualdade de partes, o atributo que o destaca é a estrita divisão de funções entre cada ator processual, sendo a mola mestra desse sistema a gestão das provas pelas partes (princípio informador).
Ora, o juiz, sendo ser humano como qualquer outro (com histórico de vida familiar, pessoal, funcional, etc.), não pode ser visualizado, de forma automática, como sujeito dotado de plena imparcialidade. Deve, ao nosso sentir, buscar esse atributo por meio de mecanismos processuais postos a seu serviço, dentre os quais vislumbramos a estrita separação entre as funções reservadas ao julgador, ao acusador e ao defensor, emprestando efetividade ao modelo acusatório de processo. Com efeito, partindo-se da premissa da condição humana do magistrado, afigura-se evidente que sua vinculação com a prova em si e com sua produção retira a característica mais importante de sua função, que é justamente a imparcialidade (sem querer afirmar, à evidência, que com isso passa a ter o magistrado interesse na causa).
Este caminho no agir do magistrado faz com que este sujeito processual figure como órgão suprapartes, posicionando- se em eqüidistância das partes, não podendo se envolver psicologicamente com os elementos materiais em debate no processo, ou seja, evitando qualquer afetação inoportuna e açodada sobre o resultado final da contenda.
É evidente, ao nosso ver, que quando o juiz se arvora no direito de produzir provas não mantém a sua imparcialidade, posto que ao sair em busca de provas sabe o que deseja encontrar, favorecendo, não raro, a condenação do acusado, funcionando como um segundo órgão persecutor, ao lado do Ministério Público.
"Quando diligencia, de ofício, além dessa fronteira do aclaramento das imputações e elementos a ele já levados, o julgador expõe-se, sim, ao parcialismo. Conforme serena reflexão de Cafferata Nores, se, para resguardar o interesse público na punição do delito, permiti¬mos que os juizes ajudem ou até substituam o Ministério Público na sustentação probatória da acusação, estaremos admitindo que os juízes sejam co-promotores, o que não é tolerável em um Estado de Di¬reito, cujo selo distintivo em matéria de administração da justiça é precisamente a imparcialidade daqueles, condição que resulta francamente incompatível com as de colaboração com o dominus litis ou com funções investigativas ou co-acusadoras. " Danielle Souza de Andrade e Silva, "A Atuação do Juiz no Processo Penal Acusatório – Incongruências no Sistema Brasileiro em Decorrência do Modelo Constitucional de 1988", Editora Sergio Antônio Fabris, 2005
Tão somente com o respeito ao modelo acusatório de gestão de provas é que os sujeitos processuais darão guarida ao que lhes foi reservado pelo texto constitucional, vale dizer, ao Ministério Público e ao acusado (por meio da defesa técnica) a total responsabilidade pela gestão da prova (exclusiva carga probatória) e ao magistrado, a mais nobre função de julgar imparcialmente e garantir os direitos fundamentais do acusado.
O princípio da verdade real (?!?), recitado por muitos manuais e pelos tribunais pátrios como fundamento ao sistema inquisitorial, permitindo que o magistrado controle a colheita do material probatória, como se parte fosse, não mais possui espaço diante da ordem jurídica advinda com a Constituição da República de 1988, até mesmo porque, em termos filosóficos, mostra-se comprometido nos dias atuais o discurso de uma verdade real fielmente reproduzida por meio de um processo histórico de reconstrução de situações fáticas (processo), sendo mais adequado falar, com Ferrajoli, na busca e obtenção de uma verdade processual, ou verdade possível.
"A verdade, no processo penal, constrói-se com a garantia da dialética das partes vistas num plano de igualdade. Igualdade que é garantida por diversos instrumentos assegurados constitucionalmente e que se enquadram no chamado processo penal acusatório. Perde sentido valer-se o julgador do princípio da verdade real para arvorar-se do poder de produzir provas, porquanto assim estará concretizando a figura do juiz instrutor, incompatível com as diretrizes esposadas na Constituição.
O qualificativo atribuído à verdade no processo penal, o de verdade real, ou `material', não pode continuar a servir de escudo para atitudes tentadoras de ingerência na atividade que cabe às partes no processo penal, sob pena de inconscientemente, afetar-se a esfera de imparcialidade objetiva.
[...]
A verdade em direito, enfim, é um constante devir, um dado não contido previamente no sistema jurídico, mas ao qual se chega após a prática de um procedimento judicial em que o julgador (sujeito tecnicamente imparcial) colhe elementos (critério da prova) para, a partir de ponderações argumentativas, articular pressupostos e consequên¬cias e formar um convencimento, sem que se possa, com isso, disso¬ciar a verdade assim alcançada dos valores socialmente mais relevan¬tes naquela situação." Danielle Souza de Andrade e Silva, "A Atuação do Juiz no Processo Penal Acusatório – Incongruências no Sistema Brasileiro em Decorrência do Modelo Constitucional de 1988", Editora Sergio Antônio Fabris, 2005
A este diploma normativo, fulcrado na busca da verdade real (?!?) e divorciado da ordem constitucional, aliam-se muitos operadores jurídicos que admitem, assim, o sistema inquisitório na realidade jurídica brasileira, sob um frágil discurso de busca da verdade real como forma de proteção da sociedade (essa postura do Poder Judiciário que, em detrimento de direitos individuais do acusado, milita em favor da segurança pública é típica de Estados totalitários) .
"É importante destacar que a principal crítica que se fez (e se faz até hoje) ao modelo acusatório é exatamente com relação à inércia do juiz (imposição da imparcialidade) , pois este deve resignar-se com as consequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado. Esse sempre foi o fundamento histórico que conduziu à atribuição de poderes instrutórios ao juiz e revelou-se (através da inquisição) um
gravíssimo erro. O mais interessante é que não aprendemos com os erros, nem mesmo com os mais graves, como foi a inquisição. Basta constatar que o atual CPP atribui poderes instrutórios para o juiz, a maioria dos tribunais e doutrinadores defende essa `postura ativa' por parte do juiz (muitas vezes invocando a tal `verdade real, esquecendo a origem desse mito e não percebendo o absurdo do conceito), proliferam projetos de lei criando juizes inquisidores e `juizados de instrução', etc.
Frente ao inconveniente de ter que suportar uma atividade incompleta das partes (preço a ser pago pelo sistema acusatório), o que se deve fazer é fortalecer a estrutura dialética e não destruí-la, com a atribuição de poderes instrutórios ao juiz. O Estado já possui um serviço público de acusação (Ministério Público), devendo agora ocupar-se de criar e manter um serviço público de defesa, tão bem estruturado como o é o Ministério Público. É um dever correlato do Estado para assim assegurar um mínimo de paridade de armas e dialeticidade. " Aury Lopes Jr, "Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista)" , Editora Lumen Juris, 3ª. ed., 2005
Ora, uma das feições constitucionais do Ministério Público é a de órgão acusador, com o escopo de assegurar nas mãos do Estado – além do monopólio da jurisdição - a exclusividade da persecução penal, preservando a imparcialidade do juiz.
Diante deste contexto, forçoso inferir que a iniciativa probatória do magistrado deve ser, no máximo, supletiva à das partes, sendo a iniciativa de prova totalmente vedada, preservando- se sua imparcialidade e eqüidistância das partes.
A Lei n. 11.690, que entrou em vigor em 09/08/2008, trouxe nova roupagem ao tema das provas penais no CPP, aproximando- se do sistema acusatório modelado pela Constituição da República e trazendo à baila, com isso, uma questão absolutamente essencial à produção da prova no processo penal brasileiro.
Uma das modificações mais substanciais refere-se à nova redação do artigo 212 do CPP: "As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição."
A ratio legis, de forma clarividente, é buscar maior imparcialidade ao juiz, distanciando- o da colheita das provas, concedendo a este sujeito processual tão-somente poderes complementares aos das partes, vale dizer, esclarecendo pontos ainda obscuros acerca das perguntas dirigidas pelas partes.
Por oportuno, veja-se o seguinte comentário:
"Analisando o processo de formação da lei em seus debates no Congresso Nacional, é possível afirmar que a vontade do legislador foi assegurar que as partes perguntassem primeiro que o juiz. Neste sentido, Comissão instituída pelo Poder Judiciário apresentou à Senadora Ideli Salvatti propostas de emendas, que foram apresentadas por esta Senadora à CCJ do Senado Federal, para alteração do PLC n. 37/2007 (originário do PL n. 4.205/2001 da Câmara dos Deputados). Dentre estas, constava a Emenda Modificativa n. 07, que alterava a redação original para permitir que o juiz perguntasse antes que as partes, ao argumento de que, sendo ele destinatário da prova, deveria ter primazia em sua colheita. [...]
Todavia, esta Emenda n. 07 foi rejeitada pela CCJ do Senado, que seguiu o Parecer n. 1.089/2007, da lavra do Relator do projeto de lei no Senado, Senador Mozarildo Cavalcanti. Este parecer é eloqüente e merece transcrição das partes ligadas a este ponto: Todos os projetos de lei da chamada Reforma do Código de Processo Penal estão fundados no modelo acusatório, reconhecidamente o mais apto à consecução de um processo penal não apenas ético, mas igualmente mais simples, célere, transparente e desburocratizado, trazendo maior eficiência e atacando a impunidade." Thiago André Pierobom de Ávila - A nova ordem das perguntas às testemunhas no processo penal (CPP, art. 212), www.jusnavigandi. com.br
Todavia, mesmo diante da alteração legislativa, que concede máxima efetividade ao sistema acusatório adotado pelas normas constitucionais, há magistrados que ainda preferem interpretar a norma do art. 212 do CPP no sentido de que o juiz ainda possui o poder de perguntar primeiro, com postura inquisitorial (ativa na colheita da prova). Ao agir desta forma, em nosso entendimento, tais representantes do Estado-Juiz acabam por olvidar a ratio legis que inspirou a alteração legislativa, conduzindo a hermenêutica para um discurso com traços inquisitoriais.
Neste passo, cabe-nos refletir acerca das conseqüências jurídicas do não cumprimento do modelo procedimental instaurado a partir da novel redação do artigo 212 do CPP. Ou seja, cabe a indagação: a postura judicial inicialmente ativa na colheita das provas, com violação à ordem estabelecida pelo artigo 212, do CPP, gera mera irregularidade, nulidade relativa ou nulidade absoluta do processo a partir do ato processual viciado?
A nosso aviso, a violação do modelo acusatório de gestão de provas estabelecido no artigo 212 do CPP, com a colheita de provas diretamente pelo magistrado e com a atuação supletiva das partes (ordem estabelecida antes da vigência da Lei nº 11.690/08) gera nulidade absoluta do processo, posto que as normas constitucionais com teor processual têm natureza de normas de garantia, vale dizer, de normas que buscam assegurar maior imparcialidade e isenção ao juiz, de garantia das partes e de processo justo (baliza substancial do devido processo legal).
Nessa ordem de sustentação, decisão recente do vanguardista Tribuna de Justiça gaúcho declarou a nulidade absoluta do processo, por lesão ao princípio acusatório na iniciativa probatório do magistrado:
"PROCESSUAL PENAL. INQUIRIÇÃO DAS VÍTIMAS E TESTEMUNHAS DIRETAMENTE PELA MAGISTRADA CONDUTORA. NULIDADE.
A nova redação legal do art. 212 do CPP, dando largo passo em direção ao sistema acusatório consagrado na Lei Maior, previu expressamente a subsidiariedade das perguntas do Magistrado em relação às indagações das partes: do juiz é exigido o julgamento justo e eqüidistante, de modo tal que não pode ele ter compromisso com quaisquer das vertentes da prova." (Apelação n. 70028349843, da 5ª. Câm. Crim. do TJRS, rel. des. Amilton Bueno de Carvalho, julgado em 18/03/2009)
Nesta brilhante decisão, considerou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que a ausência do Promotor de Justiça na audiência e a realização das perguntas pelo magistrado gera a necessidade de nulificação parcial do processo para que nova sentença fosse proferida valorando como prova oral exclusivamente o interrogatório do acusado, mediante a fundamentação de que "a legislação subalterna deu claro passo no rumo do sistema acusatório consagrado na Lei Maior, vindo a determinar que o juiz pergunte após e subsidiariamente às partes. Mas se as partes nada quiserem indagar, ou se, intimadas, não demonstrarem interesse em comparecer na audiência designada, data venia, não há o que possa o juiz `complementar' : a iniciativa das partes é a de nada perguntar, e não será o juiz que substituirá tal interesse." E prossegue " E como a defesa, presente na audiência, não manifestou interesse em qualquer pergunta às ofendidas e às testemunhas – suas indagações alcançaram apenas o interrogatório do acusado –, não vejo outro caminho senão o de anular o feito no ponto viciado (fls. 99/106) e determinar a imediata prolação de sentença, à vista, apenas, do interrogatório do réu (neste a defesa demonstrou interesse em realizar indagações e, ademais, o regramento legal incidente na espécie é outro, a teor do que dispõe o art. 188 do CPP)."
Neste trabalho, procuramos defender (visando suscitar as discussões nas próprias fileiras de nosso Ministério Público) que, especialmente a partir da vigência da Lei nº 11.690/08 (que consagrou definitivamente o sistema acusatório dentro do ordenamento jurídico pátrio), houve vedação à produção da prova no processo penal diretamente pelo magistrado, competindo tão somente às partes tal iniciativa e ao magistrado atuação complementar desde que vinculada aos pontos de discussão em debate nos autos. As teses acusatória e defensiva devem ser sustentadas e demonstradas única e exclusivamente pelas partes constitucionalmente investidas de tal mister, quais sejam, o Ministério Público e a Defesa. Sustentadas pelas partes e demonstradas ao órgão judicial, que, para se desincumbir materialmente de sua função de garante dos postulados de ordem republicana que emanam da Carta Magna, deve apenas receber a prova produzida pelas partes, não podem ter a iniciativa de sua produção, ainda que se verifique falha na atuação do órgão do Ministério Público na reconstituição da situação fática retratadora de um ilícito criminal.
Suponhamos que em um caso de grande repercussão em um pequeno município do interior do Estado (latrocínio ou estupro, v.g.), em uma situação evidentemente imaginária e extremada, o órgão do Ministério Público daquela localidade reiteradamente se abstém do seu dever constitucional de produzir em juízo sob o crivo do contraditório os elementos de convicção necessários à procedência da pretensão acusatória, deixando, inclusive, de comparecer às audiências respectivas. O magistrado, sabedor desta postura do Parquet e percebendo que as provas produzidas em juízo, naquela perspectiva, conduzirão à absolvição do acusado, decide então se irrogar na função de órgão acusador e passa, no nosso exemplo, a colher diretamente todos os relatos das testemunhas e informantes, afastando a incidência do artigo 212 do CPP. Pergunta-se: houve violação ao sistema acusatório e seus corolários (imparcialidade, vinculação indevida à prova, etc.) e, em assim sendo, trouxe tal comportamento nulidade processual absoluta ao feito?
A resposta deve necessariamente ser positiva.
Essa talvez seja a maior crítica ao sistema acusatório: a impossibilidade do Estado-Juiz de se substituir ao órgão acusador quando este último age de maneira negligente ou falha, ainda que se possa perceber, de plano, que o caso demandaria procedência da eventual pretensão acusatória. Nada resta ao magistrado no tocante à produção desta prova. Pode intentar junto ao órgão respectivo a obtenção de sanção disciplinar do membro do Ministério Público por falta do dever funcional, mas jamais pode interferir no resultado da ação penal, sob pena de se vincular aos elementos de convicção e perder sua inarredável imparcialidade.
Citando Aury Lopes Jr.:
"A posição do juiz é o ponto nevrálgico da questão, na medida em que `ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, mais sábio que experto; o rito inquisitório exige, sem embargo, um juiz-ator, representante do interesse punitivo e, por isso, um enxerido, versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação'.
O tema também está intimamente relacionado com a questão da verdade no processo penal. No sistema inquisitório, nasce a (inalcançável e mitológica) verdade real, onde o imputado nada mais é do que um mero objeto de investigação, `detentor da verdade de um crime', e, portanto, submetido a um inquisidor que está autorizado a extraí-la a qualquer custo. Recordemos que a intolerância vai fundar a inquisição. A verdade absoluta é sempre intolerante, sob pena de perder seu caráter `absoluto'." Aury Lopes Jr, "Direito processual Penal e sua conformidade constitucional" , Editora Lumen Juris, Volume I, 2ª ed., 2008, p. 73
Em sede de decisão liminar no Habeas Corpus nº 121.216 - DF (2008/0255943- 3), o eminente Ministro do STJ Jorge Mussi, assim decidiu:
"Não obstante haja resistência pertinente às mudanças procedidas no ordenamento processual penal, é certo que com a nova redação dada ao art. 212, pela Lei nº 11.690/2008, `o juiz simplesmente poderá complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos, cabendo-lhe ainda não admitir as perguntas que não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já feita' (SOUZA, JOSÉ BARCELOS DE. Boletim IBCCrim. Novas leis de processo: inquirição direta de testemunhas. Identidade física do juiz. ano 16, nº 188, julho, 2008, p. 15). [...]
No caso em apreço, da documentação acostada ao remédio constitucional, extrai-se do termo de audiência consignação feita pelo julgador no sentido de que `tal dispositivo legal não trouxe qualquer inovação com relação ao sistema outrora estabelecido a respeito da presidência dos atos procedimentais realizados no curso das audiências, qual seja, sistema presidencial, o qual permanece em pleno vigor e, nessa condição, concede ao Magistrado o poder/dever de, caso queira, argüir primeiro as testemunhas arroladas pelas partes' (fls. 31).
O aresto vergastado, por sua vez, reconheceu que na hipótese o ato objurgado incorreu `em erro de procedimento' , porém negou provimento à reclamação (fls. 53 a 61).
Assim, em que pese os judiciosos fundamentos expostos no acórdão reclamado, o qual mesmo admitindo que houve a inversão apontada pelo Ministério Público, não anulou a audiência procedida em desacordo com o art. 212 do Diploma Processual Repressivo, em um exame perfunctório próprio desta fase procedimental, resta suficientemente demonstrada a plausibilidade jurídica do pleito referente à ofensa ao devido processo legal, sendo mister destacar que contra o paciente já foi proferida sentença condenatória, ou seja, está em vias de iniciar o cumprimento de sanção imposta em feito que, tudo indica, é nulo.
Desse modo, presentes os requisitos necessários ao acolhimento da tutela de urgência, consistentes no fumus boni juris e no periculum in mora, defere-se a liminar, para suspender os efeitos do édito repressivo até o julgamento definitivo deste mandamus."
CONCLUSÃO
Diante do exposto, a necessária conclusão é de que o desrespeito ao preceito normativo do novo artigo 212 do CPP, enseja efetivo prejuízo às partes e atentado à função jurisdicional, ante a lesão a formalidades legais que implicam violação aos princípios constitucionais direta ou reflexamente, fazendo-se mister a declaração de nulidade absoluta.
De outra banda, ao nosso sentir a atuação judicial complementar, após a inquirição das testemunhas pelas partes, deve ser procedida com bastante cautela ou parcimônia, tão-somente para preencher lacunas eventualmente decorrentes de questionamentos das partes (sobre fatos que, para o juiz, não tenham ficado plenamente claros, mas que já tenham sido ventilados pelas partes), não se podendo admitir que o magistrado estenda o lastro probatório, arvorando-se na função instrutória e afetando o sistema acusatório, em que a gestão da prova pertence às partes, relegando a interpretação conforme a Constituição do dispositivo legal do artigo 212 do CPP.
É mais do que chegada a hora (já que passados mais 20 anos da promulgação da Constituição da República) de fazer-se uma releitura do papel do juiz na atuação no processo penal, de um lado valorizando a tão nobre função de julgar com imparcialidade, com equidistância dos sujeitos processuais parciais, e de outro preservando as garantias constitucionais do acusado (e do processo), buscando a verdade processual e tendo por meta final a busca de um processo penal justo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aury Lopes Jr, "Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista)" , Editora Lumen Juris, 3ª. ed., 2005
Aury Lopes Jr, "Direito processual Penal e sua conformidade constitucional" , Editora Lumen Juris, Volume I, 2ª ed., 2008, p. 73
Danielle Souza de Andrade e Silva, "A Atuação do Juiz no Processo Penal Acusatório – Incongruências no Sistema Brasileiro em Decorrência do Modelo Constitucional de 1988", Editora Sergio Antônio Fabris, 2005
Thiago André Pierobom de Ávila - A nova ordem das perguntas às testemunhas no processo penal (CPP, art. 212)
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