domingo, 17 de janeiro de 2010

SO OS EGOISTAS SERAO FELIZES?-TEXTO EXTERNO DE RAYMUNDO NETTO




Só os Egoístas Serão Felizes (O Marquicismo na República do Boró)

“Quem trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro!”, sou prova, até então, viva, disto. Trabalho o tempo inteiro: em casa sou o último a dormir e o primeiro a acordar. Até quando na praia, pés na brancareia, a mente ansiosa em produzir... Dias e dias, incluídos finais de semana e feriados, contadas quatro horas de sono e a volta à rotina quase desperta do ofício! Tantas promessas que nem sei como ainda tenho amigos...

Também não sei como alguém consegue viver (não digo sobreviver) cumprindo oito horas de “batente”... Depois do “ponto”, o descuido com a vida é fatal. Família, amigos e prazer? Esqueça! Solidão... Será que viver assim vale a pena?...

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Domingo passado, um casal bateu palmas em meu portão. Após dispensáveis apresentações o homem perguntou, “na lata”, se eu era feliz. Disse-lhe: Acho que não! (mas o que é que ele tinha a ver com isso?) Sorriu satisfeito, feliz com a minha "infelicidade" — comportamento muito comum entre bípedes como nós — ou porque era essa a sua deixa para apontar-me um folhetinho de regras básicas para alcançar a apregoada felicidade. Ao final, disse-me, puxando para si a mulher — gorda, feia, suada e com dentes amarelos — que eles, sim, eram felizes.


— Ah, é? Que bom... — normalmente, esse papo entreportão findaria com um de nada “obrigado” e eu voltaria mais que depressa ao computador para quebracabecear a crônica que comecei acima, mas, inesperadamente, surpreendendo até a mim, pus fim: — ... e vocês não têm vergonha disso, não?


Por mudos instantes, ficaram perplexos. De sorridentes, suas feições passaram a medonhas: cerraram os dentes, saltaram os olhos, torceram a boca, largaram-se as mãos, derrubaram os sagrados papeletes na calçada.


— Digo isso — continuei — porque não acredito que alguém consiga ser feliz num mundo onde haja tanta injustiça, maldade e sofrimento. Vocês não assistem a noticiários, não?
— Só passa coisa ruim. Prefiro as palavras de Deus... — afirmou, orgulhoso.
— Pois é. Tem muita coisa ruim mesmo... e a gente precisa saber! Saber, por exemplo, que tem tanta gente... nossos irmãos... sem ter um lugar digno para morar, mesmo quando na cidade encontramos, por todos os lados, imóveis abandonados, vazios e inúteis, bons terrenos cheios de mato e lixo. Saber também que a maior parte deles pertence a poucos, ou aos mesmos, donos. Você não acha que sendo a cidade um bem natural de todos, ela deveria ser melhor distribuída? Não acha que deveria haver uma lei que estipulasse um teto máximo de acúmulo de “riqueza” para evitar a concentração de renda tão desigual e absurda como nós temos por aqui?
Você acredita que nos dias de hoje, numa cidade como essa, no tempo em que alguns bairros esbanjam luzes de Natal, noutros não se têm água encanada, esgoto ou iluminação elétrica nas ruas, e que nesses locais nem a polícia tem coragem de entrar?

Juro que eu não entendo por que enquanto muitos têm que espremer o orçamento familiar, viver de empréstimos, sofrer humilhações e privações para garantir o carioquinha diário, rapazes “abençoados” gastem o equivalente a seus salários numa noite de restaurante se amostrando àquela moçoila deslumbrada que ele também quer comer... E por que, Deus seu, enquanto alguns, ainda não contentes, têm dinheiro suficiente para sustentar inclusive as futuras gerações, outros trabalham a vida inteira em condições vexatórias, até mesmo após a aposentadoria, fazendo bicos dias e noites, serviços grosseiros, mesmo doentes e sem plano de saúde, pegando conduções lotadas de madrugada ou em trânsitos caóticos para garantir a sobrevivência dos netinhos, pois a renda da família inteira junta não dá para levar? É justo que as crianças dessas famílias — que já nascem com a restrita concessão de existir e sem o tributo advocatício — sujeitem-se às escolas de ensino precário, nas quais além de conviver em meio a atrocidades, como drogas e prostituição, ainda lhes sejam negadas o futuro ingresso à universidade pública, esta garantida com promessas de comemorações para os filhos dos privilegiados que têm dinheiro para pagar as particulares, hoje, maquinais fábricas de vestibulandos?

Ah, pobres pais, trabalhadores, que chegam a dormir nas calçadas das escolas para garantir a matrícula do filho, crente que assim ele poderá ter um destino diferente dos seus...
Conhece algum professor de escola pública, amigo? Eu, sim. São mal remunerados, não reconhecidos e, muitos, mesmo assim, tiram do seu para conseguirem ministrar as suas aulas, sabia? Na nossa cidade, alguns ainda têm que ser escoltados pela viatura policial para garantir a sua segurança, temerosos da ira de alunos marginais.

Então, me diga, como ser feliz sabendo que, neste momento, alguém pode invadir casas honestas, estuprar menininhas, espancar velhinhos e não sofrer a devida (impossível) punição? Ou sabendo que pessoas dormem à rua, usam drogas e vendem seu sexo para comprar pirulitos, ao mesmo tempo em que a indústria da corrupção prospera à cara limpa no país, fruto da justiça cega e paraplégica e das costas largas de gente “dita” bem-sucedida, admirada pelo sucesso à custa da compra de colunistas sociais e do sacrifício da dignidade de vida de um povo? Tudo em nome das drogas do poder e do dinheiro. Dinheiro, droga de dinheiro. Droga, vicia mesmo!
Muito pior é estar convencido de que as pessoas julgam que tudo isso nada tem a ver com elas, que nós só temos o que merecemos, que quem nada tem é porque não estudou, é vagabundo, cachaceiro ou coisa e tal. É tão mais fácil fechar os olhos — e o coração — e fingir não saber que a nossa vaziúda sociedade é um jogo de cartas marcadas onde muitos, a maioria, já nasceram condenados a viver sem amor, família, teto, escola, princípios e futuro. Mas os destinos se encontram...

O dinheiro e o poder, verdadeiros deuses da nossa fiel e desumana humanidade, justificam tudo. O sistema diz, a todo instante: Não reaja! Não importa, não reaja! Como não? Até quando não iremos reagir? Até nos tomarem tudo? Até conseguirem nos convencer a vender a alma em troca de um par de tênis ou de uma porcaria de celular? Aí pode?
Como ser indiferente a isso tudo e dizer simplesmente que é feliz, cara? Tem que ser muito egoísta para ser feliz assim, não acha?

— A verdadeira justiça será concedida de graça a todos os que têm fome e sede de fazer o que é correto. A ceia de Jesus é farta... — arrematou com olhos de vidro, em tom de decoreba profética. Foi quando, fitando-os, percebi-os bem demais para compreender qualquer coisa. Foram-se, abanando a cabeça — a mulher a consolar o marido que lamentava, certamente, a ignorância deste ente condenado à treva — mas felizes!


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Volto agora à crônica, desgostoso com a conversa chata e a lembrança da cara lavada de um punhado de bem intencionados adormecidos que proclamam a justiça exclusiva pós- morte. Pois eu cá falo da vida, essa efêmera, passageira, mas primeira certeza, até que a segunda, a morte, nos separe. E para aqueles que perdem seu tempo, que fecham os olhos e ouvidos e se consolam com esta resignação besta e cômoda, digo: Vão, vão assistir a novelinha das oito, os tediosos programas de domingão, vão encher a cara nas micaretas envolvidos em pré-panos de chão caríssimos, curtam a vida, explodam seus cartões de crédito, comprem, gastem com tudo que não precisam e engordem a porca paralítica dos capitalistas. Desperdicem bastante, joguem fora o futuro e o mundo de seus filhos, percam a ternura e sejam felizes, porque eu, simplesmente, não tenho coragem. Ouça-os: Não reajam! Não reajam! E, se puderem, tenham um Feliz Ano Novo, pois bem-aventurados os que não sentem, pois deles é o reino (falido) da Terra!

Raymundo Netto que entra ano, sai ano e não vê nada de novo na República do Boró. Contato (talvez seja melhor não...) raymundo.netto@ uol.com.br blogue:http://raymundo- netto.blogspot. com

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